Conceição

Valeska Torres

Não sou eu quem me navega
Quem me navega é o mar

Paulinho da Viola 
Hermínio Bello de Carvalho


      No trem do ramal de Japeri, às 6 horas da manhã, o craquelado rubro escorria do teto que escancarava um rosto desfigurado. Os surfistas do trem desciam compadecidos, em meio ao luto, nas plataformas ferroviárias rumo às carcaças de enferrujadas refinarias que rasgavam a zona portuária. O homem, cujo rosto é indecifrável, naquela manhã não bateu o ponto, nem comeu a marmita e o patrão brandiu aos seus operários: ninguém falta ao trabalho e não sofre castigo pela vagabundagem. À noite, Conceição enrolou o escapulário entre os dedos calejados, em prece pedindo proteção ao marido que não veio feito teu pai, o pai do teu pai e toda uma geração de homens que não voltaram. Mas Conceição não acreditava − deus não anda entre os seus.

     O galo cacarejava anunciando na língua dos bichos que o candeeiro aceso diz que o mundo ainda não pariu o fogo. Era hora. Conceição despertou, logo enrolou o pano na cabeça e revirou as bugigangas a procura do latão, mastigou um pão e saiu até a bica d'água. Descendo o morro veio à memória Waldeci. Fazia sete meses desde sua morte. Fora enterrado em vala comum como indigente, pois Conceição não chegou a tempo de reconhecer o corpo. Waldeci deixou como herança as cuecas, o barraco e um agiota que cobrava as dívidas com juros, vez ou outra, com bofetadas. Conceição voltou a si quando olhou para o céu escurecido, sentiu um arrepio e apressou os passos. Chuva no morro não era bom presságio. No asfalto a preocupação eram os alagamentos, no morro eram os deslizamentos. Na bica as lavadeiras se aglomeravam, uma a uma, enchendo latões até o transbordo. Conceição falava com Benedita sobre a chuva que ia chegar, enquanto a vizinha dizia que ouviu no rádio que − não era nada não, só chuva fina que vai embora. A intuição de Conceição estava apitando, dizendo que vinha mais que só uma garoa, o troço ia ser perigoso. Subiu apressada quando sentiu os primeiros pingos, enfraqueceu as passadas para não machucar muito a coluna, que já de manhãzinha doía forte. Escancarou o portão e já foi adiantando as roupas das madames para colocar no varal o quanto antes porque precisava entregar até amanhã passadas e perfumadas. No quintal botou comida para os bichos: galinhas, coelhos e porcos que ela criava em meio a lama e bugigangas que acumulavam das vezes em que revirou os lixos quando descia até o asfalto para entregar as roupas das madames.

     As trovoadas faziam os cachorros uivarem cada vez mais alto em bando, o coro se misturava em um só som até que Conceição percebeu que junto aos trovões juntavam-se o estrondo do barranco, os bichos uivando e a gente toda gritando debaixo da terra. O medo se apossou do corpo trêmulo, entre aceitar o barro engolir sua pele ou correr de encontro a miséria que seria o seu futuro, ela escolheu ser amassada em meio aos destroços junto do que restava do marido. Antes enrolou o escapulário no pescoço, e mijou no chão tal era o terror do dia. Primeiro veio o trovão, depois o porco arrebentou a porta e, por fim, o cheiro da lama úmida invadiu sua morada. A velocidade de como tudo foi engolido não foi a mesma de como Conceição se deu conta de que a foice da morte tinha sido generosa com a sua vida. Uma de suas bugigangas a salvou: uma caçamba encardida que ficou entre uma lasca de madeira do barraco e o corpo de Conceição. Metade da lama pressionava sua cintura, principalmente, o calcanhar, a coxa e a coluna. Zonza devido ao sacolejar, ela pediu favores a morte mais uma vez. Sabia que morreria sufocada e sozinha vagarosamente, porém não contava que seu abismo eram seus próprios pensamentos, pois além de sufocada e sozinha também morreria aterrorizada. Pensava que não bastasse a pobreza, não bastassem os olhares das madames, não bastasse catar lixo na rua, não bastassem dois abortos violentos, não bastasse a morte de Waldeci, haveria de ter também uma morte cruel.

     Foi depois de vinte e duas horas de soterramento que a única sobrevivente foi encontrada desfalecida, mas viva. A mulher preta de origem desconhecida foi colocada numa maca com roxeamentos e arranhões. Quando abriu os olhos no hospital e moveu o corpo com muita dor, soube imediatamente que nada daquilo tinha sido só um pesadelo. No leito a enfermeira contou que não restara nada do barraco, dos bichos e das vizinhas. Soube também mais tarde, quando ouviu no rádio do leito ao lado, que sua vizinha Benedita morreu sufocada pelo barro e havia sido encontrada embrulhada num monte de roupa. Encucada sem saber por onde recomeçar a vida, sem dinheiro e com nenhuma ajuda do Estado, o que não a surpreendia, já que não tinham ajudado sua bisavó após a abolição, nem ajudado sua mãe quando ela teve que pedir esmola − é de sangue essa coisa de se virar feito cadela no mundo − decidiu pedir dinheiro ao seu Ramiro, grande amigo do seu falecido marido.

     No armazém 17, em meio ao comércio portuário do Rio de Janeiro, Conceição saiu à procura de Ramiro. O homem desceu da embarcação atracada na Baía de Guanabara segurando um burrinho sem rabo carregado de sacos de milho. Um tumulto que só! Quando se encontraram, ele lhe deu um abraço forte daqueles que apertam as costelas. Já esperando o pedido da mulher, logo se adiantou fazendo uma proposta para que ela dormisse em sua casa. Apesar do pouco espaço, disse que tinha lugar para alguns dias até se ajeitar. Naquele dia ela foi até a praia, tirou os sapatos e deixou que o mar encostasse em seus pés; olhou para as primeiras estrelas que apontavam no céu e, de novo, acreditou na esperança. De longe, viu os braços de um pescador estirando redes e pensou consigo que não é tarefa difícil apanhar os peixes. Foi de encontro ao outro homem que atracava um barco na areia e perguntou como ela poderia arranjar um daqueles. O moço com um sotaque fortíssimo do norte, respondeu que não era um barco qualquer e sim uma jangada, e disse mais: a gente veio aqui para falar com o presidente! Conceição riu, mas logo ficou séria quando viu que o moço encarava seu rosto com uma expressão rude. Decidiu sair de perto quando outros dois homens apareceram junto do moço, mas não sem antes perguntar o nome do sujeito. Caminhando até a casa de Ramiro, ela se viu perturbada com o sujeito da praia, repetiu Tatá algumas vezes porque era bonito repetir o rosto dele em sua memória sempre que pronunciava seu nome.

     No outro dia, em busca de emprego, ela vagou por muitas ruas até esbarrar em uma das madames. A madame tomou um susto ao ver Conceição viva e, intrigada, perguntou como ela havia sobrevivido ao desastre. Ambas concordaram quando a lavadeira disse que foi por intermédio divino. Lá estava a mulher branca que morava num casarão e a mulher preta sem moradia. Um abismo que Conceição segurava contra peito como se fosse sua última chance. A madame ofereceu o trabalho de babá quando, então, deu por si que sua sogra logo estava de volta de sua viagem à Europa e não gostava de gente preta. Aquele deveria ter sido o fim do seu dia, mas uma fagulha a fez caminhar até a praia onde os jangadeiros estavam. De longe avistou Tatá, com os mesmos braços e os mesmos olhos rudes de quem vai devorar o mundo. No íntimo da lavadeira crescia a vontade de saber o que o levava até essa cidade e porque ele queria falar com o presidente, entretanto não tinha coragem de encará-lo de novo. E assim sucederam mais alguns dias entre a busca de um emprego e observar Tatá em sua jangada.

     As areias da ampulheta escorriam para o fim quando se tratava de comida e de um teto para dormir. Ramiro ainda não tinha decretado sua expulsão, porém era nítido o incômodo. No desespero, Conceição foi até a praia e implorou para ir junto com Tatá para qualquer lugar que ele fosse. O homem, acabrunhado com o pedido, perguntou se ela sabia onde era o Ceará, e um silêncio constrangedor tomou conta da boca de Conceição, até que ela percebeu que como tudo na sua vida, aquilo era outra coisa que deveria agarrar contra o peito e tomar coragem para não perder, como as outras tantas vezes em que perdeu algo.

Posso não saber de Ceará, mas sei das estrelas e das águas. Sei que aprendo o que for, que puxo a rede que for, que lavo roupa e já desci morro abaixo e tô viva nesse mundo do cão! Não há quem olhe por mim, nem presidente, nem as madames, nem ninguém! Passar fome?! Já passei! Eu tô é cansada pra caralho, tô ficando doida...

     Os outros homens riram à beça depois que a mulher voltou a si, menos Tatá que sabia que a mulher vinha todo dia à praia ficar fuxicando as coisas. Ele enrolou a corda do barco atracado na mão e pediu para que Conceição puxasse junto com a mesma força que tinha para gritar com gente que não conhecia. Ela finalmente riu de algo mesmo depois de tanto tempo que nem saberia dizer quanto. Tatá foi avisando que seriam muitos quilômetros na volta, mais de dois mil, e que partiriam só depois que falassem com o presidente. Conceição então deu por verdade toda essa história e perguntou o porquê dessa vontade de falar com essa gente. Tatá disse que não era vontade, era necessidade, e explicou toda a história de luta dos jangadeiros do Ceará, disse que vinha para buscar os direitos dos pescadores. Era difícil entender o que eram direitos já que Conceição viveu uma vida inteira sem saber qual era serventia para uma lavadeira analfabeta, mas daí se deu conta de que o falecido Waldeci já tinha contado as histórias de luta do povo no asfalto, dizia sobre as revoltas e os protestos, sobre a busca por esses direitos. Se encheu de vontade de justiça por aqueles homens que nem conhecia, mas sabia que velejar tão distante assim não era à toa.

     Içar a vela, arrematar o nó, puxar as redes, se apaixonar pelo mar, e assim se sucederam os dias, depois as semanas e, de tanta teimosia, lá se foram 61 dias até que o presidente apertou a mão do líder do movimento. Tatá e Conceição se entrelaçaram feito dois bichos na areia da praia para comemorar a vitória, e de manhãzinha, debaixo de trovoadas feitos os dias de outrora, seguiram rumo a terra desconhecida com mais uma pessoa a bordo.

     Como saber qual direção seguir nesse mar que corta continentes, territórios, gentes? Desafiar as ondas que quebram na areia, amar o timoneiro de uma embarcação que te leva para o início de uma vida que não esbarre de encontro a morte. Conceição sabia, mas não queria acreditar que amar não era garantia de comida, que nem todo mar é bom para peixe e que Tatá tinha família em Ceará. Fugir da miséria que atravessa o corpo mesmo que seja como amante. Cidade maravilhosa para quem? Gritou com o corpo de encontro ao mar. Desejar a morte até chegar ao ponto de não desejar mais nada. Quando atracou o barco na praia da outra cidade, ela soube que era estrangeira no seu próprio país. Do Rio de Janeiro só restou as memórias, terra pretérita feita de naufrágios e destroços. 


* esse conto foi narrado pela Elisa Lucinda no podcast Águas de Kalunga, segue o link: https://museudeartedorio.org.br/podcast/ep-7-conceicao-por-valeska-torres/


Valeska Torres (1996) nasceu e cresceu no subúrbio do Rio de Janeiro. É poeta, escritora, performer, editora-assistente na editora 7Letras, apresentadora do podcast Garganta! e estudante de Biblioteconomia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). É autora do livro O Coice da Égua (7Letras, 2019) e publicou em diversas antologias, fanzines e plataformas digitais. Em 2020, seu poema Tempos Porosos foi um dos selecionados pelo edital do Itaú Arte como Respiro: Múltiplos Editais de Emergência. Em 2017, foi selecionada para a residênciano Festival Internacional de Poesia de Rosário (FIPR)na Argentina e no mesmo ano recebeu menção honrosa por sua participação no V Concurso Literário Professor Arnaldo Niskier com a crônica Marlene.

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